• Quando a transfusão de sangue em cirurgia é necessária?

As práticas de transfusão sanguíneas começaram nos centros cirúrgicos. De forma artesanal, os cirurgiões realizavam as transfusões na tentativa de salvar vidas1. O primeiro relato é atribuído a James Blundell, um obstetra que, em 1818, transfundiu sangue humano em mulheres com hemorragia pós-parto2.

Desde o século XIX, a transfusão de sangue tem sido utilizada em frequência e intensidade crescente em todo mundo. A prática de transfusão de sangue em cirurgias é especialmente importante uma vez que grandes intervenções cirúrgicas podem levar ao choque hemorrágico3,4.

O choque hemorrágico, por sua vez, é um problema global que resulta em quase 2 milhões de mortes anualmente no mundo5 e pode deixar sequelas graves que aumentam a mortalidade a longo prazo6.

Por exemplo, a taxa de transfusão de hemocomponentes em cirurgia de revascularização miocárdica chega a 92,8% para glóbulos vermelhos, 97,5% para plasma fresco congelado e 90,4% para infusão de plaquetas7.

 

Quando realizar a transfusão em cirurgias?

O período que envolve toda a experiência cirúrgica do paciente é chamado de período perioperatório. Nele há um protocolo cujo o objetivo é manejar o paciente de forma que não necessite transfusão. O período perioperatório pode ser divido em cinco etapas: pré-operatório mediato, pré-operatório imediato, transoperatório, intraoperatório e pós-operatório8.

 

Pré-operatório mediato

O período pré-operatório se inicia no momento da definição da cirurgia e estende-se até o momento em que o paciente é recebido no centro cirúrgico8. Nessa etapa é realizada uma consulta pré-operatória/pré-anestésica, avaliação do risco transfusional e investigação de anemia9.

Em cirurgias eletivas deve-se investigar e tratar a anemia preexistente, suspender o uso de antiagregantes plaquetários, reverter a anticoagulação e programar, sempre que possível, a transfusão autóloga9.

 

Pré-operatório imediato

É o período que abrange desde 24 horas antes do procedimento cirúrgico até a entrada do paciente no centro cirúrgico8.

 

Transoperatório

Período desde a admissão do paciente no centro cirúrgico até a saída da sala de operação8.

 

Intraoperatório

O período intraoperatório se inicia com o procedimento anestésico-cirúrgico e estende-se até o seu término8. Durante essa etapa a transfusão de hemácias está indicada quando a perda sanguínea for maior que 500ml ou quando houver sinais de hipóxia decorrente da perda aguda de sangue9.

 

Pós-operatório

E o período pós-operatório compreende todo o período após o ato anestésico-cirúrgico em que são seguidas as mesmas orientações apontadas anteriormente8.

 

 

Transfusão sanguínea em cirurgias

Os riscos cirúrgicos e a necessidade de transfusão sanguínea variam a cada caso, cabe ao médico o conhecimento e análise em relação ao consumo de hemocomponentes destinado ao paciente submetido à intervenção cirúrgica. Dessa forma, a Agência Transfusional, responsável por armazenar e entregar sangue e seus derivados, deverá realizar exames imunohematólogicos pré-transfusionais, liberar e transportar os produtos sanguíneos para as transfusões e, assim, prover um serviço rápido, seguro e sem desperdícios9.

Se considerarmos exclusivamente a utilização de hemocomponentes para cada cirurgia, podemos classificá-la pelo índice de pacientes transfundidos. Esse índice é calculado pelo número de pacientes transfundidos divido pelo número de cirurgias realizadas multiplicados por 100, o resultado é um valor em porcentagem que pode ser interpretado da seguinte forma9

 

Índice maior que 10%

Recomenda-se a compatibilização de concentrado de hemácias previamente à cirurgia (número de unidades compatibilizadas será determinado pela média utilizada por paciente). Requisição de reserva é fortemente recomendada nessas situações9.

As cirurgias cardiovasculares, vasculares e as neurocirurgias, no geral, possuem como média geral um índice de pacientes transfundidos acima de 10%, mas existem casos em que o índice é menor, por exemplo, implante de marcapasso (índice <1%)9.

Algumas cirurgias com índice de pacientes transfundidos maior que 10% são:

  • Transplante de coração;
  • Amputação de membros inferiores ou superiores;
  • Hematoma subdural agudo;
  • Transplante de fígado;
  • Hepatectomia.

 

Índice entre 1 e 10%

Recomenda-se que seja realizada a tipagem sanguínea (ABO e RhD) e a pesquisa de anticorpos irregulares previamente. Requisição de reserva é recomendada, com valor zero para quantidade para concentrado de hemácias9.

Como média geral, as cirurgias ortopédicas, ginecológicas e urológicas costumam ter índice de pacientes transfundidos entre 1 e 10%9. Algumas delas são:

  • Gravidez ectópica;
  • Histerectomia;
  • Nefrectomia;
  • Prótese total de joelho;
  • Artroplastia joelho/ombro.

 

Índice menor que 1%

Não se recomenda qualquer preparo hemoterápico prévio. A requisição de reserva fica a critério médico a depender do paciente9. Algumas cirurgias com índice de pacientes transfundidos menor que 1% são:

  • Colecistectomia;
  • Mamoplastia redutora;
  • Implante de marcapasso;
  • Biópsia pulmonar/osteotomia;
  • Cesárea.

 

Existem exceções a esse índice em casos complexos ou associado a outras comorbidades. Nesses casos, o médico deve justificar o preparo hemoterápico prévio (índice entre 1-10%) ou a requisição de reserva hemoterápica (índice menor que 1%)9

É necessário que a requisição de reserva de hemocomponentes para procedimentos cirúrgicos sejam programados pela equipe cirúrgica com antecedência de 48 a 24 horas. Dessa forma, a Agência Transfusional poderá compatibilizar o número de concentrado de hemácias de acordo com a proposta, mantendo um estoque suficiente para atender qualquer intercorrência9.

 

 

O que fazer para evitar a transfusão sanguínea em cirurgias

Atualmente, há uma queda mundial das doações de sangue, resultando em bancos de sangue com estoques reduzidos. No Brasil, a demanda de sangue não é proporcional às doações, sendo possível a falta desse recurso terapêutico para se realizar e/ou finalizar cirurgias10.

Dessa forma, é importante considerar ações que reduzam o consumo de componentes sanguíneos alogênicos, como métodos que diminuam o sangramento no intraoperatório ou a realização de transfusão autóloga7.

 

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Referências

  1. JUNQUEIRA, Pedro C.; ROSENBLIT, Jacob; HAMERSCHLAK, Nelson. História da hemoterapia no Brasil. Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, v. 27, p. 201-207, 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbhh/a/KPf53b35B5jDZqSkmtJKkZj/?format=html&lang=pt. Acessado em novembro de 2022.

  2. YOUNG, J. H. James Blundell (1790–1878) experimental physiologist and obstetrician. Medical history, v. 8, n. 2, p. 159-169, 1964.
  3. HUNT, Beverley J. Bleeding and coagulopathies in critical care. New England Journal of Medicine, v. 370, n. 9, p. 847-859, 2014.
  4. HALMIN, Märit et al. Epidemiology of massive transfusion: a binational study from Sweden and Denmark. Critical Care Medicine, v. 44, n. 3, p. 468-477, 2016.
  5. LOZANO, Rafael et al. Global and regional mortality from 235 causes of death for 20 age groups in 1990 and 2010: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2010. The lancet, v. 380, n. 9859, p. 2095-2128, 2012. Disponível em: Link. Acessado em novembro de 2022.
  6. MITRA, Biswadev et al. Long-term outcomes of patients receiving a massive transfusion after trauma. Shock, v. 42, n. 4, p. 307-312, 2014. Disponível em: https://journals.lww.com/shockjournal/Fulltext/2014/10000/Long_Term_Outcomes_of_Patients_Receiving_a_Massive.4.aspx. Acessado em novembro de 2022.
  7. SANTOS, Antônio Alceu dos et al. Opções terapêuticas para minimizar transfusões de sangue alogênico e seus efeitos adversos em cirurgia cardíaca: Revisão sistemática. Brazilian Journal of Cardiovascular Surgery, v. 29, p. 606-621, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbccv/a/d8jFp8y6vSQMPwHGJHqNFjQ/?lang=pt&format=pdf. Acessado em novembro de 2022.
  8. FENGLER, Franciele Cristine; MEDEIROS, Cássia Regina Gotler. Sistematização da assistência de enfermagem no período perioperatório: análise de registros. Revista SOBECC, v. 25, n. 1, p. 50-57, 2020. Disponível em: https://scholar.archive.org/work/vxhvwdyyv5gvddtdrkw7tl3ejm/access/wayback/https://revista.sobecc.org.br/sobecc/article/download/517/pdf. Acessado em novembro de 2022.
  9. RICCI JUNIOR, Octávio et al. Manual Transfusional, Hemocentro de São José do Rio Preto, São José do Rio Preto, São Paulo, 3ª edição, 2019. 110 p. disponível em: http://www.hemocentroriopreto.com.br/files/Manual%20Transfusional%203%C2%AA%20Edi%C3%A7%C3%A3o.pdf. Acessado em novembro de 2022.
  10. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Meu Sangue Brasileiro: Ministério da Saúde lança campanha para incentivar doação de sangue. 2021. Disponível em: https://aps.saude.gov.br/noticia/11656. Acessado em novembro de 2022.

 

 

Publicado em 24 de Maio de 2023

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